Por que há montanhas de milho ao relento no interior do Brasil
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Ao lado da pilha, um caminhão graneleiro parece um caminhãozinho de brinquedo e um homem de capacete torna-se um pontinho quase imperceptível.

A montanha de milho ao relento, registrada na Cooavil (Cooperativa Agropecuária Terra Viva) em Sorriso, no Mato Grosso, é uma de muitas que se acumulam pelo interior do Brasil, em meio à colheita da maior safra do grão da história do país.

Segundo a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), em dados divulgados na quinta-feira (13/7), o Brasil deve produzir 128 milhões de toneladas de milho, somando as três safras do ciclo 2022/2023 — num crescimento de 13% em relação ao ciclo anterior, que já havia sido recorde.

A safra gigante tem ajudado a reduzir a inflação no país ao baratear a ração animal e o custo de produção das carnes, que já acumulam queda de preços de quase 6% no ano, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A safra também tem contribuído para um PIB (Produto Interno Bruto) maior do que o esperado este ano e para superávits recordes na balança comercial brasileira, com o país a caminho de desbancar os Estados Unidos como maior exportador de milho do mundo.

Mas a safra recorde de milho, logo após uma safra também recorde de soja, além dos preços em baixa de ambos os grãos, resultaram em armazéns lotados e toneladas de milho armazenadas ao ar livre, expostas a temperaturas elevadas, à possibilidade de chuvas e a ataques de insetos e roedores.

O problema já aconteceu em anos anteriores, mas em 2023 está mais grave, de acordo com representantes do agronegócio ouvidos pela BBC News Brasil.

Segundo a Câmara Setorial de Armazenagem de Grãos da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (CSEAG-Abimaq), o déficit de armazenagem de grãos no Brasil cresceu de 83 milhões de toneladas em 2022 para 118 milhões de toneladas este ano — também um recorde.

A foto citada no início do texto foi cedida à BBC News Brasil pela própria Cooavil. A reportagem tentou ainda ouvir um porta-voz da cooperativa, mas não foi possível por questão de agenda.

Um problema crônico e crescente

Paulo Bertolini, diretor da Abramilho (Associação Brasileira dos Produtores de Miho), explica que o déficit de armazenagem é um problema crônico do agronegócio brasileiro, mas que vem piorando ano após ano.

Isso porque a produção de grãos brasileira tem crescido a uma média 9,4 milhões de toneladas por ano, enquanto a capacidade de armazenagem cresce praticamente a metade disso: a um ritmo de 4,8 milhões de toneladas por ano, segundo dados da Conab e da Abimaq.

Assim, com dois anos seguidos de safra recorde, a armazenagem de milho a céu aberto na segunda safra este ano acontece em volume sem precedentes.

“É bem mais do que em anos anteriores e o problema da falta de espaço para armazenagem aconteceu aqui no Paraná já na primeira safra, pela primeira vez na história”, relata Bertolini.

A título de comparação, enquanto a primeira safra (colhida entre janeiro e fevereiro) somou 27 milhões de toneladas, a segunda safra (atualmente em fase de colheita) deve chegar a 98 milhões de toneladas, com um crescimento em volume de 14% em relação à segunda safra do ano passado, segundo a Conab.

Antes chamada de “safrinha”, a segunda safra de milho brasileira supera a primeira desde o ciclo de 2011/2012, chegando ao dobro de volume no período 2017/2018 e a mais do que o triplo no ciclo 2022/2023.

“Agora está entrando a segunda safra, com volume bastante grande de produção, e ela encontrou os armazéns ainda repletos de soja. Então é um problema crônico, mas que esse ano se agravou substancialmente”, diz o diretor da Abramilho.

“Quem mais sofre é o milho, porque ele tem um valor agregado menor do que a soja — uma saca de milho vale menos do que a metade que a de soja”, acrescenta.

“E ele produz duas vezes e meia a mais por hectare, então ocupa duas vezes e meia mais espaço do que a soja ocuparia e gasta duas vezes mais tempo para secar. Então a situação do milho é mais grave, num cenário onde o Brasil não tem capacidade para processar sua produção inteira.”

Preços em baixa

Além da safra recorde, a queda de preços dos grãos também explica o grande volume de milho armazenado a céu aberto este ano, diz Sadi Beledelli, presidente do Sindicato Rural de Sorriso (MT).

“Como não só o preço do milho caiu, mas o preço da soja caiu, muitos produtores não fizeram negociação de soja ainda, estão mantendo a soja armazenada [à espera de melhores preços]. Então ela está tirando o espaço que seria ocupado pelo milho nesse período”, afirma.

“Nós não temos armazéns suficientes na região para armazenar as duas safras, então muitos armazéns estão colocando milho a céu aberto, do lado de fora.”

Beledelli explica que isso é possível no Mato Grosso porque chuvas são raras na região nessa época do ano. Mas a partir de setembro, quando voltam as águas, será necessário colocar todo esse milho em algum lugar, diz ele.

João Pedro Lopes, analista de inteligência de mercado da StoneX, lembra que 2021 e 2022 foram anos de preços altos para os grãos.

Isso por conta de uma combinação de safras prejudicadas por questões climáticas no Brasil e no mundo; efeitos inflacionários da pandemia de covid-19; desvalorização cambial por aqui; e a guerra entre Rússia e Ucrânia, a partir de fevereiro de 2022, que afetou o embarque de grãos ucranianos e o preço de insumos agrícolas, como os fertilizantes.

Em 2023, no entanto, os preços apresentam tendência de queda acentuada, devido à expectativa de forte produção no Brasil, elevada oferta também nos Estados Unidos e, mais recentemente, pela valorização do real, que torna as exportações brasileiras menos atrativas.

Assim, a soja, que chegou a ser negociada no porto de Paranaguá (PR) acima de R$ 200 por saca de 60 kg em março de 2022, é cotada atualmente a R$ 145 — uma desvalorização de 30% em relação ao pico, segundo dados do Cepea/USP (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, da Universidade de São Paulo).

Já o milho chegou a R$ 104 a saca de 60 kg em março do ano passado, sendo negociada atualmente a R$ 55, uma desvalorização de 47% em relação ao pico, conforme o índice Esalq/BM&FBovespa.

E a falta de espaço para armazenagem pressiona ainda mais os preços, diz Bertolini, da Abramilho.

“Quando as cooperativas ficam sem espaço para receber a produção dos seus cooperados, o agricultor que ainda não comercializou a produção que está prestes a colher força o mercado, porque precisa se ver livre da produção que ninguém quer receber, fazendo os preços desabarem”, relata.

O prejuízo aos produtores devido à falta de estrutura para processamento e armazenagem dos grãos é estimado em R$ 30,5 bilhões na safra 2022/2023, segundo cálculo de Carlos Cogo, da consultoria Cogo Inteligência em Agronegócio, citado pelo diretor da Abramilho.

“Na nossa região de Campos Gerais no Paraná, a safra passada do milho veio a R$ 100 a saca, hoje está em torno de R$ 40. Esse valor não remunera os custos de produção e a atividade passa a operar no vermelho”, diz Bertolini.

“É um prejuízo ao agricultor e um desestímulo para a próxima safra, quando provavelmente haverá uma redução de área de plantio.”

´Falta política de Estado´

Segundo estimativa da Abimaq, seriam necessários R$ 15 bilhões em investimentos por ano para frear o aumento do déficit em armazenagem.

“O que falta ao Brasil é recurso para financiamento compatível com o tipo de investimento necessário”, avalia Bertolini.

Ele defende a necessidade de mais verba para o PCA do BNDES (Programa para Construção e Ampliação de Armazéns do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e de que o financiamento para investimento em armazenagem chegue na ponta, aos agricultores.

Em 2022, apenas 15% da capacidade de armazenagem de grãos no Brasil estava nas fazendas, enquanto 85% estavam em áreas urbanas e industriais, administradas em sua maioria por cooperativas e traders (grandes empresas dedicadas à negociação global de commodities).

Nos EUA, em comparação, mais de 60% da capacidade de armazenagem está nas fazendas. O país tem capacidade de armazenar o equivalente a uma safra e meia, cita o diretor da Abramilho, com base nos dados da Abimaq.

Procurado, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) informou que, para a safra 2023/2024, foram destinados R$ 6,65 bilhões ao PCA.

“São R$ 2,85 bilhões para financiar armazéns com capacidade de até 6 mil toneladas, o que corresponde a 80,9% a mais de recursos comparativamente à safra 2022/2023, e R$ 3,80 bilhões para financiar armazéns com capacidade acima de 6 mil toneladas, ou 60,8% acima do que foi programado na safra passada”, informou a pasta.

“Além disso, existem outras medidas para ajudar o produtor a enfrentar a defasagem, como a linha dolarizada do BNDES que oferece recursos sem limite de volume e tamanho de armazenagem para que o produtor não tenha que vender uma safra a preços baixos para colocar outra no armazém.”

Já o BNDES afirmou em nota que “atento ao comportamento da demanda e às necessidades do setor, mantém aberto permanentemente o produto BNDES Crédito Rural”.

“Vale destacar também que para atender aos projetos de armazenagem do segmento, além dos recursos do PCA, o BNDES também realiza operações na modalidade direta, onde o banco assume o risco de crédito”, disse o banco de fomento, citando as linhas BNDES Finem e Finame Direto.

Para Beledelli, do Sindicato Rural de Sorriso, apenas ampliar o volume de financiamento não basta.

“Uma política governamental a respeito de armazenagem tem que ser implantada de forma urgente no país”, defende o ruralista.

Segundo o representante do setor, é preciso também uma política de Estado para a questão logística, com a melhora das condições de transporte, principalmente através de ferrovias, e o aumento da capacidade dos portos brasileiros.

Ele defende ainda a necessidade da desburocratização para que a iniciativa privada possa fazer isso acontecer.