A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votou pelo não reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005). O julgamento virtual, encerrado nesta segunda-feira (21), ocorre no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3526). Proposta em 2005 pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, a Ação contestou mais de 20 dispositivos da lei que estabelece normas e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGMs) e seus derivados, tais como sementes, leveduras e outros produzidos em laboratórios, em geral, por empresas transnacionais. Com o não reconhecimento da inconstitucionalidade, a Lei – em vigor há 18 anos – permanece como está.
No julgamento, oito dos onze ministros votaram pelo não reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei. Em 2021 o ministro e relator da Ação Nunes Marques já havia se manifestado contra a ADI. Após devolução do pedido de vista em julho deste ano, o ministro Gilmar Mendes também votou contra a Ação. O voto de Mendes foi acompanhado dos ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, André Mendonça e Cristiano Zanin. Empossado no início do agosto, o ministro Cristiano Zanin manifestou – como uma das suas primeiras votações na Corte – em favor do mercado de transgênicos. Os votos dos ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia e Rosa Weber foram, ainda que vencidos, importantes manifestações em defesa da Constituição Federal, especialmente em alinhamento ao que a Carta Magna determina em relação à ciência, à saúde e meio ambiente.
Isto porque, conforme o artigo 225 da Constituição Federal, atividades com potencialidade de prejuízos ao meio ambiente – como o uso de organismos geneticamente modificados – devem ser submetidas obrigatoriamente a estudos prévios de impacto ambiental. No entanto, a Lei de Biossegurança – questionada na ação em julgamento – tornou facultativa a realização dos estudos prévios e condicionada à decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Ou seja, em descumprimento com a lei constitucional e aos principais documentos sobre transgênicos como a Convenção sobre Diversidade Biológica e o Protocolo de Cartagena – normativas das quais o Brasil é signatário, a CTNBio, de modo isolado, pode decidir pela não necessidade de elaboração do estudo prévio ambiental.
Na prática, desde que a Lei entrou em vigor a aprovação de organismos geneticamente modificados têm ocorrido de modo automático e com dispensa de estudos prévios. Na argumentação técnica e jurídica na ação, realizada na ação pela Terra de Direitos e a Associação Nacional de Pequenos Agricultores, na condição de amicus curiae (amigo da corte), as organizações destacaram que ao menos 750 estudos científicos indicam riscos e incertezas dos OGMs foram desconsiderados pela CTNBio. Em muitas vezes têm sido as empresas que decidem por conta própria se vão ou não monitorar os efeitos de seus produtos no ambiente e na saúde, como aponta o Grupo de Trabalho da Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia.
Para o integrante do GTBio e engenheiro agrônomo, Leonardo Melgarejo, com este voto a maioria do STF dá o grave recado à sociedade de que “está validado o descumprimento de preceitos constitucionais e a negação de compromissos internacionais relativos à possíveis danos ambientais e à compromisso de ações preventivas, precautórias, em situações de dúvida quanto à riscos de danos ambientais”, diz.
Na avaliação de Melgarejo a maioria do Supremo ignorou, ao votar pela manutenção da Lei como está, comprovados impactos dos transgênicos à saúde humana e ao meio ambiente. Fatos como morte massiva das abelhas, contaminação e alteração do ciclo da água, a redução na produtividade dos solos e o não cumprimento das promessas que a tecnologia dos transgênicos, como o atendimento à fome.
“Desde o início da vigência da Lei, aprovada sem debate popular, nenhum pedido de liberação comercial de transgênicos foi negado, mesmo aqueles embasados em pesquisas incompletas. A possibilidade de dispensa de Estudos de Impacto Ambiental se tornou a regra das decisões da CTNBio”, sublinha a assessora jurídica da Terra de Direitos, Tchenna Maso.
“A manutenção da Lei acarreta riscos à sociobiodiversidade brasileira, protege os interesses das empresas transnacionais que têm a certeza da aprovação de seus produtos, em detrimento dos interesses coletivos diante dos riscos de contaminação. Isso porque as normas técnicas estabelecidas pela CTNbio não têm se mostrado efetivas para proteger as e os camponeses e seus cultivos tradicionais da contaminação por trangênicos”, complemente ela.
Importante contraponto
Em dissonância com demais ministros e em semelhante posicionamento do Procuradoria Geral de República e organizações, o ministro Fachin destacou em seu voto que a regulação internacional dos organismos geneticamente modificados ainda visualiza um ambiente de dúvidas sobre os impactos das OGMs na saúde humana e meio ambiente, o que torna necessária a realização de estudos prévios de impactos. “Há graves incertezas quanto às consequências relativas ao seu impacto nos ecossistemas, na biodiversidade, nos modos tradicionais e autóctones de vida, e em questões socioculturais”, enfatiza o ministro.
Outro ponto da Lei questionado na Ação diz respeito aos dispositivos que atribuíram competência exclusiva para a CTNBio na decisão sobre casos de liberação de produção ou comercialização dos organismos geneticamente modificados. Com isso, os demais órgãos públicos federais, dos estados e municípios têm anulado o exercício de suas funções em relação aos OGMs. A Lei 11.105/2005 ainda indica, na prática, que a fiscalização dos OGMs é tarefa exclusiva dos órgãos federais, excluindo as demais esferas.
“Há que se ressaltar ainda que esta supressão, que passa pela simplificação de procedimentos e pelo cerceamento da competência dos demais entes federativos, impacta também a dimensão democrática da participação popular nestes procedimentos”, aponta Fachin. “Como apontei anteriormente, esta democratização faz parte do mecanismo de produção de legitimidade da Constituição da República de 1988, e se concretiza com especial interesse no domínio do Direito Ambiental. Tanto os estudos de impacto ambiental quanto os procedimentos de licenciamento têm a eles associados, tradicionalmente, mecanismos de participação da sociedade civil”, complementa o ministro.
A decisão da maioria dos ministros não apenas traz graves riscos à biodiversidade como também torna menos rigoroso e democrático o processo de avaliação e liberação de transgênicos, apontam as organizações. “Com esta decisão o STF fortalece o bloqueio às avaliações consistentes por parte de profissionais da área, estabelecidos em instituições ambientais de todos os níveis federativos. Mais do que isso, com esta decisão o STF também sinalizou fragilização – se não anulação completa de obrigação e direito constitucional da sociedade agir em defesa de um ambiente sadio e equilibrado, quando ameaçado por tecnologias relacionadas às manipulações genéticas”, diz Melgarejo.